Do Trabalho ou Falta Dele I (Antigo)

Retrato de um dia de trabalho


Desanimado, ele olhava o micro, que parecia retribuir perguntando “Como é? Não vai me ligar não?”. Conformado, aperta o botão e suspira, enquanto linhas de comando dançam refletidas em seus óculos. Bem, o jeito é começar. E nesse ponto ele se pergunta, mais uma vez como chegou lá. Vem à sua mente imagens distorcidas de um despertador tocando, e ele cambaleando para fora de seu quarto, coçando o peito através do buraco na rota camiseta, tão gasta que mal se pode ler “TINTA É CORAL.”. Um café fervente, e a corrida até o ponto. Atrasado como sempre; encostar no balaústre de apoio e... o resto aparecendo nebuloso;. não lhe interessa.

É despertado por um som familiar, seus colegas entrando na sala. Acessando seu serviço, assusta-se com o volume. Trabalho referente à sexta e sábado. Ah, é... É segunda, mas poderia ser qualquer outro dia, já que se sente sempre preso num buraco do contínuo-tempo-espaço. Pessoas sorriem para ele e ele se pergunta o que na vida pode ser engraçado. Tenta e desiste, pela ducentésima vez, de arrumar sua baia (Baia, eles dizem, mas onde está o meu cocho?). Agora, aos arquivos para gerar os relatórios. Imprimir arquivos eletrônicos para gerar arquivos eletrônicos, onde está a lógica nisso? Tangencia o raciocínio, irritado. Ás vezes a sanidade está em não analisar.

Ouve um barulho atrás de si. Volta-se acabrunhado para poder mirar a impressora que, com suas luzes piscantes parece debochar dele. Chega mais perto. As três luzes acendem alternadamente. Primeiro uma verde. Depois a laranja. A outra verde. As três. E tudo no que ele consegue pensar é no Natal chegando... Bem que poderiam dar uma impressora nova ao setor. Não era o esperado abono mas melhor isto que nada. Uma voz conhecida diz que vai reiniciar o computador.

Finalmente a impressora expele, de má vontade, os benditos relatórios. Hora de trabalhar. Seria, se não fosse chamado pelo chefe. A conversa como sempre é improfícua. Pedindo informações antigas, cobrando trabalhos já feitos, o gerente forma o mapa de sua inapetência. Se Scott Adams fosse brasileiro, encontraria material riquíssimo em um diálogo com este, mesmo se rápido. Ao sentar novamente, o telefone toca. O chefe perguntando porque o primeiro trabalho da manhã ainda não estava pronto. Não podia dizer o que pensara, portanto limitou-se a murmurar um obséquio entre dentes. Eh, mãe..... Dizer que as pessoas gostam de trabalhar. Só queria saber quem e onde trabalha este ser interessante.

Milagrosamente o resto da manhã transcorre sem problemas. Sai para almoçar com a esperança de fazer rapidamente sua atribuições e terminá-las com folga. Vai para o boteco no qual costuma consumir a refeição. Pareceu-lhe que diminuíra a clientela, haviam detetizado o recinto. Rumina bovinamente seu repasto(!!!) sem sal e a seco (o vale não comporta almoço mais bebida), e volta para seu matadouro.

Adentra sua baia, a comida pesando nas pálpebras. Lutando contra Morfeu, a cena inicial se repete. Mas, ao tentar o menu do programa, aparece uma mensagem de erro. Não pode ser C.O (cagada do operador), ele conhece o sistema bem. Falha no programa... Que ótimo! Agora ele pode trabalhar muito mais e não ter tempo para o ócio já que os dados terão de ser procurados manualmente. Afinal, ele tem tão pouco para fazer! O monitor zomba dele. Infâmias e outros carinhos são trocados entre ambos (preciso parar de falar com objetos inanimados), e o chefe cobrando. “Ok chefe”.... ok boss. Boss tá bom? Boss tá! Boss tem a pasta? Boss tinha!

- Vá a MERDA!

Como seria bom falar aquilo de boca cheia, e sair dali para um lugar melhor. Um serviço legal, ao invés deste trabalho maçante. E, sem mais, é atingido como um raio pela epifania digna de um Nobel: a dialética de sua vida. Procurara toda a sua existência trabalhadora por um SERVIÇO; mas só arranjara TRABALHOS. E a síntese disto é a dissonância cognitiva que sentia.

O tempo é mestre caprichoso. Se estivesse com o serviço dentro do cronograma, a tarde escoaria lenta, mas neste caso agora são 17:30. Em menos de trinta minutos ele sairá.

-QUEM DISSE?????

O gerente quer o serviço hoje de qualquer maneira! Trate de se preparar para o serão. Um após o outro, seus colegas vão embora. Só ele fica, pois o programa era específico para seu trabalho, e ele corre contra o tempo. Mais de uma hora após o horário ele vai entregar o serviço ao chefe, que pergunta: “O que que eu vou fazer com isto a esta hora? Atualize e me traga amanhã cedo.”.

Esta foi a gota d’água. Não só tripudiaram de sua infeliz existência, como desfizeram sua hombridade. Ele olha para a pança gorda de seu interlocutor, imaginando o quão fácil seria apenas jogá-lo no chão e fazê-lo comer o papel que, aliás, é amassado no presente momento. O chefe olha-o e pergunta se há algo mais. E agora é o momento. Ele sabe o que fazer, e faz:

- Mais nada. Até amanhã, senhor.

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