O abutre (Antigo)


Faz quatro semanas. Quatro semanas e eu ainda tremo! Só espero que, ao escrever, tudo passe a fazer mais sentido, ou vou acabar enlouquecendo. Embora entenda que possa ter sido apenas o fruto de uma mente sob pressão, ainda assim eu peço que algum bem maior me faça esquecer a série de fatos que me levaram a imaginar o indizível e ignominioso horror que pode existir no além-túmulo. Finalmente eu entendi as sábias palavras de Sherlock Holmes “Sem imaginação não há horror”... só espero que Conan Doyle não tenha passado pelo horror que eu passei.
Bom, mas se vou colocar tudo em papel como é meu intento, é melhor começar a contar tudo desde o princípio. Já aviso que não colocarei outros nomes além do meu aqui; pois caso esta história vaze para alguém que não deveria, será mais difícil correlacionar lugares e fatos (imagino que se eu passar este escrito para alguém, este já saberá de antemão o necessário).
Meu nome é Cláudio, e sou oncologista. Trabalho em um hospital que é referência no trabalho com câncer em São Paulo, e foi lá que tudo começou quando, há cerca de seis meses atrás, recebemos um rico fazendeiro e político para tratarmos com câncer terminal. Este nosso paciente tinha uma expectativa de vida de dois meses, e recorrera ao nosso hospital para conseguir uma sobrevida. Para tanto, ele estava disposto a contribuir “filantropicamente” com uma soma considerável à nossa instituição. Este fato levou o diretor do hospital a querer um médico com o paciente 100% do tempo; e isto levou o chefe da oncologia a escolher um médico do qual ele quisesse se livrar (já explico: se o médico fizesse o necessário, não ganharia mais reconhecimento, se não fizesse seria o culpado; daí o chefe da oncologia escolher algum desafeto – alguém que. por exemplo, não fosse puxa-saco). E por fim eu terminei como babá do velho.
A verdade é que eu não queria conhecê-lo, afinal na mídia ele tinha fama de ser algo truculento e mesquinho. E qual não foi a minha surpresa ao encontrar um dócil e gentil octogenário na minha frente, mesmo que eu tenha percebido que a gentileza não era parte de sua natureza, tal a força que parecia fazer para se policiar. Enfim, fizemos as apresentações e comecei a tratá-lo.
Com uma semana de tratamento tivemos uma conversa que certamente mudou o modo como nos encarávamos. Enquanto olhava em seu prontuário ele me perguntou:
- Doutor, o senhor é religioso?
- Não – respondi sem hesitar. Como ele sustentou o olhar, acrescentei – Creio ser possível existir um ser superior que nos criou, mas acho as respostas das religiões simplistas demais.
Ele sorriu, como se tivesse contado uma piada que eu não entendesse, e continuou:
- Percebo... eu também via o mundo assim até meu acidente dois anos atrás. Quer dizer que o senhor é contra a religião?
- De maneira nenhuma. Ela é a melhor maneira que a maioria das pessoas têm para conseguir focar seus objetivos e a sua fé. E já foi provado através dos placebos que a fé pode mais do que podemos imaginar.
- Então o senhor não se importaria se eu colocasse por aqui um terço, ou uma imagem de São Jorge, não é?
Ele me sorria já sem malícia, mas parecia apreensivo. Sorri de volta, afinal era só um velho crédulo. Brinquei:
- São Jorge? Tá precisando de um guerreiro do seu lado, é?
- Talvez de toda a proteção que eu possa ter – disse ele com amargura.
Percebi que havia sido estúpido. Não era minha intenção, de modo que falei:
- Se o senhor realmente quiser, eu posso pedir pra minha mãe, que é católica, comprar os dois na paróquia dela, e pedir para o padre abençoar. O que o senhor acha?
- Você faria isso mesmo? – seus olhos brilhavam.
- Vou ver se consigo para amanhã! – disse saindo do quarto.
Com efeito, na manhã seguinte trazia o dois objetos (ligara para minha mãe assim que saí do quarto). A partir daí conseguimos o melhor tratamento médico paciente possível. Eu poderia usar o termo amizade, mas creio que este talvez seja forte para descrever o que havia na ocasião. E, com relação ao tratamento, eu comecei a usar um método cubano revolucionário, que era caro mas ele conseguia facilmente pagar. O sujeito melhorou a olhos vistos; até saía da cama. Assim criou-se uma rotina fácil: tratamento intercalado pela visita dos seus advogados, que o vinham ver dia sim dia não. Quatro meses escoaram deste modo, até aquela maldita noite.
Eu havia trabalhado demais no hospital (já que o velho melhorara – e não reclamara de mim, o chefe da oncologia me havia devolvido as atividades normais, com um dispositivo que monitorava os aparelhos do quarto dele. Qualquer coisa que ocorresse ele era prioridade), e estava com dor de cabeça. Assim que eu sentei na sala dos médicos, o aparelho começou a bipar. Segurei um xingamento e corri para o quarto. No caminho passei pelas enfermeiras da ala e reclamei sobre a sala. Não fiquei para ver, creio que elas ficaram brancas. Quando cheguei ao quarto, ele se debatia violentamente, fazendo a cama ranger. Corri para a cama olhando seus batimentos, estavam altos, mas nada anormal. Percebi então que estava sonhando! O sacudi vigorosamente, e ele acordou com um grito:
- NÃO!!!!
Ele olhou para mim e quando me reconheceu relaxou. Começou a tremer e a chorar. Eu lhe pedi calma, em voz baixa, imaginando se ele se acalmaria. Ele gritou comigo:
- Nada adianta! NADA!! Rezar, filantropia, nada! Isso é tudo besteira! – ele então derrubou com um gesto a imagem de São Jorge, como suas ultimas palavras iradas denunciaram que ele faria. Isso foi a gota d’água. Eu estava cansado, com sono, fome, dor de cabeça e não ia agüentar estrelismos. Respondi-lhe:
- ACALME-SE!!! Há mais gente que sofre aqui, e não pode agüentar esta baderna! Ou eu terei que sedá-lo??? Acalme-se e diga o que aconteceu.
Ele respirou fundo, continuando com a cantilena “eu estou condenado, eu estou condenado....”. insisti:
- Me conta, vai...
Ele sorriu, de uma maneira irônica que calhava tão bem com seu rosto que eu acreditei que o senhor simpático que se apresentara quatro meses atrás nunca existira. Me olhou bem nos olhos e disse:
- Sinto garoto, mas seu trabalho de me fazer viver mais foi em vão.
- Não acredito nisso – não dei o braço a torcer, falando de maneira seca – meu trabalho foi fazer você viver mais de dois meses, e você passou dois meses dessa marca.
- Você tem razão. Mas para mim não adiantou nada. Você imagina porque eu queria viver mais? Era para conseguir redenção.
- Como assim?
- O que você sabe de mim?
- O que já foi veiculado nos meios de comunicação.
- Então você não sabe de nada! Eu era um monstro, e vou pagar por isso... Bom, vejo que você está curioso, vou lhe contar...
As palavras dele ecoam na minha mente soltas, sem fazer nenhum sentido. Não ficaram gravadas como as posteriores, mesmo porque este preâmbulo, mais o que ocorreu depois, tornou a segunda parte do relato mais memorável. Mas eu ainda me lembro do que ele me contou. Ele desfiou para mim um relato tão macabro que me fez sentir mal. Toda a sua escalada ao poder, e acreditem não era nada bonito. Genocídio, extorsão, corrupção de jovens, parricídio, escravidão, simonia, tudo que existiu de ruim fez parte da sua carreira. Os fatos horrendos, junto com os detalhes por si só já seriam suficiente para causar pesadelos, mas o que mais assustava era o tom de voz com o qual ele falava. Sem arrependimento ou qualquer outro tipo de sentimento, como alguém que lê uma lista de filmes. Lista esta que continuaria noite adentro, se ele não tivesse parado para respirar e dissesse:
- E continuaria até dois anos atrás...
- Com o acidente? – perguntei, tentando evitar parecer temeroso, mas feliz por mudar de assunto. Nunca em minha mente acreditei estar lidando com alguém tão perigoso!
- Sim. Você deve ter ouvido falar que fiquei como morto por mais de 10 minutos, não lembro quanto, mas praticamente um recorde no Brasil. E eis o que eu vi.
“Lembro-me vagamente do caminhão em minha direção. De ter virado o carro na direção do lago. Senti uma dor terrível. Até hoje não posso andar sem ajuda de uma bengala, sabe? Não sei como saí do carro. Bem, após cerca de um bom período, ouvi sirenes e pensei: Estou morrendo, e justo agora? Que irônico. E de repente minha dor sumiu! Levantei-me, e me vi, um corpo caído à beira do lago. Sabia que era eu e não importava pois estavam me chamando, e parti para um túnel que se abriu bem a minha frente. Então era verdade, eu pensei. Me senti flutuando, flutuando.... Até aterrissar. Então veio o horror: Estava á beira de uma praia rochosa, junto a penhascos terríveis, que dava para um mar vermelho e fumegante. O chão era de uma estranha pedra negra, que parecia com lama, só que cristalizada. O céu era de rubro-escuro forte, quase orgânico, pesado como se fosse feito de sangue, e era encimado por um sol de calor inclemente, tão escuro quanto o chão. E no céu voavam abutres. Milhares deles! Em alguns pontos pareciam pequenos enxames de mosquito, o que me fez perceber que a terra na qual eu me encontrava era muito maior do que parecia. Entenda, eu estava aterrorizado com a visão então só depois de perceber isto tudo é que ouvi os gritos. Eram os gritos mais lamentosos que jamais ouvira. Percebi então que vinham de seres humanos! Subi a encosta pequena mas íngreme, e a visão que tive foi abalante. Humanos estavam meio presos na lama, e estavam nus! Percebi então que eu também estava. Mas para eles era pior. Estavam sendo atacados por criaturas. Haviam os terríveis abutres bicando a todos mas haviam outros. Umas criaturas pareciam um filho bastardo de um dogue alemão com um macaco. Criaturas terríveis! Esmurravam os pobres coitados e os seguravam com seus membros inferiores e superiores, enquanto arrancavam nacos de carne com a boca. E haviam lobos terríveis.... lobos não, eram mais como chacais enormes, pelados, malformados, com os músculos poderosos e veias que pareciam trepadeiras pelo seu corpo, além de quatro presas que pareciam dentes-de-sabre. E estes seres medonhos estavam sempre se movendo, sempre se revezando entre os humanos que atacavam. Vi um dos chacais cortar um rapaz pelo meio. E o coitado se juntou novamente! Como um milagre sua carne foi se colando. Mas não ficou perfeito, pelo contrário, ficara totalmente esquisito. E antes que ele pudesse se levantar, foi atacado por um abutre que lhe deu um rasante direto no peito. Me veio a mente que aquilo parecia uma versão macabra da história de Prometeu, com os humanos regenerando em criaturas cada vez mais imperfeitas.
E no meio de toda esta depravação, vi um ser andando casualmente. Parecia com um humano, com um grande lagarto e com um inseto terrível. Nada disso e tudo ao mesmo tempo, entende? É claro que não; ele parecia tudo ao mesmo tempo, mas cada vez que se olhava uma “identidade” se sobressaía. Em seus ombros andava um grande abutre maior do que qualquer outro, com a cabeça cheia de tumores, de tal maneira que seu olho direito havia sido coberto por carne putrefata. Quando o humanóide me viu, seu sorriso se abriu largo, e ele veio correndo em minha direção, o dedo em riste, apontando. Ouvi então um uivo terrível e percebi que algo havia se apercebido da minha presença. Virei-me para fugir e percebi que a pedra debaixo do meu pé se dissolvia e virava lama, voltando a se cristalizar lentamente, prendendo-me. E então, quando estava quase para ser estripado, sentindo meu coração bater e as pernas fraquejarem, me trouxeram de volta. Eu estava na mesa de cirurgia, e uma enfermeira me dizia que tudo ia acabar bem. Desde então tenho um medo terrível de morrer e voltar para lá. Imagine então como eu me senti quando uns meses depois me disseram que eu tinha um câncer inoperável. Por isso que de lá para cá eu passei a tentar ser melhor. Eu já me arrependi, mas acreditei que deveria fazer o possível para mudar minha vida. Por isso a filantropia, a mudança de comportamento, o apego a religião. E eu achei que tivesse dado certo, até esta noite. No meu sonho, me levantei e vi meu corpo descansando.... Não tive medo pois sabia que não estava morto, então fui até a janela e percebi, para meu espanto, que uma dúzia de abutres estavam lá fora! Pude perceber como eram feios, com pescoço bulboso e grandes. E aquele ser humanóide olhava lá de baixo, no chão, tendo aquele ser horrendo em sua corcunda. O abutre gigante me fitava de uma maneira que me era mais horrível que o próprio fato do humanóide estar aqui. Ele me olhava com seu olho bom como se eu fosse um petisco apetitoso. O humanóide falou baixo, e mesmo assim a voz ressoou no meu ouvido, inumana e horrível, arrepiando todos os meus pelos:
- Finalmente lhe encontramos, não? Acho melhor apressar o presente que lhe dei... e não adianta querido, nem seus badulaques, nem seus atos. Você é meu!”
Nada disse para aquele senhor arfante, a ponto de ter uma taquicardia. Ministrei-lhe em silêncio uma dose de calmantes, e ele logo dormiu calmamente. Tolice! Pura besteira! Era o que normalmente eu pensaria. Mas durante a narração sua voz foi se transformando, atingindo um terror tal que impedia que a sensatez desse a palavra final. Naquele dia saí do hospital sem olhar para o canto que era visível do quarto dele. Tive uma noite horrível e acordei de um pesadelo invocando a oração de São Jorge. A claridade do dia seguinte afastou meus medos; à luz do sol pareciam grandes bobagens. Nunca mais falamos sobre o que aconteceu aquela noite. Apenas de vez em quanto ele me olhava de uma maneira que parecia dizer “você sabe”. Mas falar mesmo nada.
Na verdade, daquele dia em diante o quadro de meu paciente piorou sensivelmente. Seus dois últimos meses de vida foram uma guerra entre ele e o câncer. Eu fiz o máximo que pude, pois algo me dizia que eu deveria tentar dar-lhe o máximo de tempo que pudesse, mas tenho de admitir que no final o que eu ministrava fazia pouca diferença, e devo acrescentar que ele viveu o último mês apenas por sua vontade férrea. Ninguém me culpou (a expectativa de vida dele foi aumentada em seis meses e ele efetivamente fez a doação ao hospital), mesmo porque aqueles meses foram estranhos (pioras de pacientes no hospital, além de um cheiro podre que ás vezes parecia vir do lado de fora), mas mesmo assim parece que há algo errado.
Às 04:50 da manhã de uma quarta-feira fui chamado às pressas ao quarto dele. Estivera dormindo na sala de médicos do hospital e em três minutos estava lá. O que ele teve foi falência múltipla dos órgãos, em menos de cinco minutos estava acabado; nem sequer foi possível levá-lo a uma sala de cirurgia. E foi aí que fui confrontado com um terror que não tem nome. Não foi a luta terrível dele pela vida, nem os espasmos com os quais ele tentava respirar. Não foi seu olhar desesperado, fixado em mim, que mostrava todo o terror de quem sabe estar condenado. Foi o fato de que, naquele espetáculo dantesco de morte, enquanto as enfermeiras desistiram, e eu fazia-lhe a massagem cardíaca, eu o vi olhar por sua janela e seu rosto transformar-se numa máscara de terror e ceder. Segui seu olhar e vi, pousado num galho em frente a janela, um urubu enorme! Sua cabeça esverdeada estava cheia de feridas purulentas, de tal maneira que seu olho direito estava coberto, deformado pela massa de pele putrefata, e o esquerdo olhava com tal malignidade que me gelou a alma! Ele olhou diretamente para mim, soltou um gemido pavoroso e saiu voando


Do Trabalho ou Falta Dele I (Antigo)

Retrato de um dia de trabalho


Desanimado, ele olhava o micro, que parecia retribuir perguntando “Como é? Não vai me ligar não?”. Conformado, aperta o botão e suspira, enquanto linhas de comando dançam refletidas em seus óculos. Bem, o jeito é começar. E nesse ponto ele se pergunta, mais uma vez como chegou lá. Vem à sua mente imagens distorcidas de um despertador tocando, e ele cambaleando para fora de seu quarto, coçando o peito através do buraco na rota camiseta, tão gasta que mal se pode ler “TINTA É CORAL.”. Um café fervente, e a corrida até o ponto. Atrasado como sempre; encostar no balaústre de apoio e... o resto aparecendo nebuloso;. não lhe interessa.

É despertado por um som familiar, seus colegas entrando na sala. Acessando seu serviço, assusta-se com o volume. Trabalho referente à sexta e sábado. Ah, é... É segunda, mas poderia ser qualquer outro dia, já que se sente sempre preso num buraco do contínuo-tempo-espaço. Pessoas sorriem para ele e ele se pergunta o que na vida pode ser engraçado. Tenta e desiste, pela ducentésima vez, de arrumar sua baia (Baia, eles dizem, mas onde está o meu cocho?). Agora, aos arquivos para gerar os relatórios. Imprimir arquivos eletrônicos para gerar arquivos eletrônicos, onde está a lógica nisso? Tangencia o raciocínio, irritado. Ás vezes a sanidade está em não analisar.

Ouve um barulho atrás de si. Volta-se acabrunhado para poder mirar a impressora que, com suas luzes piscantes parece debochar dele. Chega mais perto. As três luzes acendem alternadamente. Primeiro uma verde. Depois a laranja. A outra verde. As três. E tudo no que ele consegue pensar é no Natal chegando... Bem que poderiam dar uma impressora nova ao setor. Não era o esperado abono mas melhor isto que nada. Uma voz conhecida diz que vai reiniciar o computador.

Finalmente a impressora expele, de má vontade, os benditos relatórios. Hora de trabalhar. Seria, se não fosse chamado pelo chefe. A conversa como sempre é improfícua. Pedindo informações antigas, cobrando trabalhos já feitos, o gerente forma o mapa de sua inapetência. Se Scott Adams fosse brasileiro, encontraria material riquíssimo em um diálogo com este, mesmo se rápido. Ao sentar novamente, o telefone toca. O chefe perguntando porque o primeiro trabalho da manhã ainda não estava pronto. Não podia dizer o que pensara, portanto limitou-se a murmurar um obséquio entre dentes. Eh, mãe..... Dizer que as pessoas gostam de trabalhar. Só queria saber quem e onde trabalha este ser interessante.

Milagrosamente o resto da manhã transcorre sem problemas. Sai para almoçar com a esperança de fazer rapidamente sua atribuições e terminá-las com folga. Vai para o boteco no qual costuma consumir a refeição. Pareceu-lhe que diminuíra a clientela, haviam detetizado o recinto. Rumina bovinamente seu repasto(!!!) sem sal e a seco (o vale não comporta almoço mais bebida), e volta para seu matadouro.

Adentra sua baia, a comida pesando nas pálpebras. Lutando contra Morfeu, a cena inicial se repete. Mas, ao tentar o menu do programa, aparece uma mensagem de erro. Não pode ser C.O (cagada do operador), ele conhece o sistema bem. Falha no programa... Que ótimo! Agora ele pode trabalhar muito mais e não ter tempo para o ócio já que os dados terão de ser procurados manualmente. Afinal, ele tem tão pouco para fazer! O monitor zomba dele. Infâmias e outros carinhos são trocados entre ambos (preciso parar de falar com objetos inanimados), e o chefe cobrando. “Ok chefe”.... ok boss. Boss tá bom? Boss tá! Boss tem a pasta? Boss tinha!

- Vá a MERDA!

Como seria bom falar aquilo de boca cheia, e sair dali para um lugar melhor. Um serviço legal, ao invés deste trabalho maçante. E, sem mais, é atingido como um raio pela epifania digna de um Nobel: a dialética de sua vida. Procurara toda a sua existência trabalhadora por um SERVIÇO; mas só arranjara TRABALHOS. E a síntese disto é a dissonância cognitiva que sentia.

O tempo é mestre caprichoso. Se estivesse com o serviço dentro do cronograma, a tarde escoaria lenta, mas neste caso agora são 17:30. Em menos de trinta minutos ele sairá.

-QUEM DISSE?????

O gerente quer o serviço hoje de qualquer maneira! Trate de se preparar para o serão. Um após o outro, seus colegas vão embora. Só ele fica, pois o programa era específico para seu trabalho, e ele corre contra o tempo. Mais de uma hora após o horário ele vai entregar o serviço ao chefe, que pergunta: “O que que eu vou fazer com isto a esta hora? Atualize e me traga amanhã cedo.”.

Esta foi a gota d’água. Não só tripudiaram de sua infeliz existência, como desfizeram sua hombridade. Ele olha para a pança gorda de seu interlocutor, imaginando o quão fácil seria apenas jogá-lo no chão e fazê-lo comer o papel que, aliás, é amassado no presente momento. O chefe olha-o e pergunta se há algo mais. E agora é o momento. Ele sabe o que fazer, e faz:

- Mais nada. Até amanhã, senhor.