Sentimentos (antigo)

1 - Amargura

O sol bateu em um vitreaux, refletindo diretamente em seus olhos. Ele desviou o olhar, sem muita vontade. Era um lindo dia, meados da primavera. Mas porque então ele não estava feliz? Lembrou-se do poema de Bandeira: “o sol tão claro lá fora / e minh’alma anoitecendo”; esta era a sua vida. Olhou para o lado, para os colegas de serviço animadamente conversando, falando sobre nada. Pareciam tão felizes! Quais eram os seus segredos? Porque só ele sentia-se tão deslocado, naquela manhã, naquele lugar, naquela existência? Suspirou e voltou os olhos para o monitor: trabalho havia a ser feito. A execução era automática, tão acostumado que estava à rotina. Mas seu cérebro trabalhava, perguntando-se porque seria ele o último portador do mal-do-século. Não que deixasse transparecer; qualquer um que o abordasse, fosse no serviço, na faculdade, ou em casa, seria recebido com um grande sorriso. Mas esta era apenas a mascara que usava em sua Antares. Fora isso, era o cara isolado, que não procurava iniciar conversas com ninguém e que se trancava no fim de semana no quarto, ouvindo música clássica. Fazia isto com total abandono, sua tentativa de esquecer da vida, de que era um ser vivo, e sobrar apenas a música.
Será que eles não percebiam o que lhe ocorria? Não eram capazes de penetrar e entender o que se passava? Às vezes achava que sim, afinal seus conhecidos não eram burros. Mas ele fingia bem demais. As pessoas confiavam nele, sabiam que era uma pessoa sempre disposta a ajudar. Mais do que isso, ele era confidente deles. Não gostava de ver ninguém triste, o que fazia lembrar de sua tristeza. Assim, logo arranjava um jeito de animar o pobre ser, que lhe contava seu problema. Tal como Atlas ele carregava o peso do mundo, de vários mundos às costas. Olhou pela janela, mirando o outro lado da rua. Uma mulher passou andando rapidamente. Cabelos negros, belo rosto, lindo corpo, e um olhar de quem acredita ser a garota mais desejável do país. Como diziam seus amigos “Essa se acha a última Coca-Cola do deserto”. Acompanhou seu gingado até aquela dobrar a esquina, pousando em seguida o olhar em crianças brincando. Esboçou um sorriso amargo. Quanto tempo se passara, desde que ele teve esta idade, cheia de sonhos e felicidade... Agora ele procura apenas esperar que um dia distante encontre a paz que lhe haviam prometido, mesmo que unicamente por um átimo. Levanta os olhos, que param na torre da igreja, de onde o arcanjo Gabriel parece querer lançar-se, cobrando tributos não pagos. Ele realmente gostaria de ser religioso, assim talvez houvesse um apoio para minimizar seus sentimentos. Mas esta era uma luta que ele deveria travar sozinho.
Estava realmente amargurado. O murmurinho em sua sala aumentava, e ele virou o olhar rancoroso para seus companheiros. Uma jovem, de pé, tagarelava por três pessoas normais. Ele a achou tão vazia! Lembrou-se, cômico, de um trecho de Hamlet:” Vai, disfarça a tua ignorância sob o manto da inocência”. Sorrindo, olha para o idoso que trabalha à sua frente. Obeso e sempre de bom humor, trabalhava em seus arquivos. Gostaria de saber porque ele se sente tão bem trabalhando. Sempre tivera a impressão de que trabalhar é um ato horrível, do qual as pessoas procuram acreditar gostar por não ter outra escolha. Talvez a resposta esteja clara. Ele faz seu trabalho, nada mais, nada menos. Em sua simplicidade ele talvez tenha dado a solução. Nosso anti-héroi pensa que talvez fosse melhor não ter adquirido o gosto dos pais pelo saber. Assim quem sabe ele não estivesse passando por isso. Um carpinteiro... Não! Melhor um lavrador, ele gosta de trabalhar com terra. Seria questão saber se ele gostaria de faze-lo o tempo todo. Mas de repente ele é sacudido; chamam-no à realidade. Ele responde a pergunta com um sorriso e extrema educação, voltando-se em seguida para seu ecrã. O mundo não parou, não pára e não irá parar por sua causa. Ele sabe disso, e não liga. Mas o que lhe irrita é o sol, na manhã de primavera.

Criação de um personagem

Vou deixar, para registro, uma das várias forma que eu utilizo para criar personagens. Comecemos com um ponto. Um detalhe qualquer. Um nariz.
Como é esse nariz?? Pequeno, de linhas leves embora um tanto gordo. Um típico nariz de um brasileiro miscigenado. Com o nariz vem o rosto, um rosto delicado que orna com esse nariz. Será uma criança? Ainda não está bem claro.
Eis que surgem os olhos. Olhos escuros, meio amendoados; não olhos de orientais, apenas os olhos que aparecem em certos descendentes de africanos. Ora que surpresa! São olhos de mulher. Uma mulher jovem, a despeito de algumas pequeninas rugas que a maquiagem esconde tão bem. São sinais de uma vida de luta e sofrimento. Tem uns vinte e poucos.
Agora que definimos o sexo, o resto será mais tranqüilo.
Emoldurando as partes do corpo que já apareceram surge o cabelo. Um cabelo negro longo, cacheado e brilhante, que um ser ignóbil, pela forma, comparou num dia longínquo com “miojo”. Bonito cabelo. Mas ele sempre aparece preso; motivos puramente práticos. No momento ela está com um lenço na cabeça, ou um chapéu, não sei. A partir de agora vamos supor que, para fins de exercício, todas as informações que não são visuais não passam de suposições, certo? Mas, como eu ia dizendo, belo cabelo. Orna bem com a cor de pele, que no momento assume um tom pouco mais claro que o jambo, num efeito incrível. Linda morena...
Aparece a boca. Uma boca rosada e carnuda, do tipo que todos gostam de ver sorrindo. Porque quando ela sorri, não o sorriso tímido apresentado a todos, mas o sorriso franco e sincero de quem sabe onde está e quem é, ilumina o ambiente. Forma até covinhas! E quando ela ao sorrir morde o lábio inferior olhando prá você, a luz batendo nos malares levemente proeminentes, os olhos cheios de expectativa... ai então, meu amigo, é de tremer nas bases!
Ma ela não sorri. Não que esteja sizuda, apenas parece... cansada, o tipo de cansaço que você vê comumente nos pontos de ônibus, de manhã. Do tipo que parece dizer que horas de riso são poucas, e privadas; não devem ser mostradas a qualquer um. Continuamos descendo. O pescoço elegante termina em ombros fortes que por sua vez vão a braços exatos e terminam em mãos de linhas finas mas calejadas, o tipo de membros encontrados nas classes campesinas, acostumado com a lide diária. Provavelmente trabalha numa fábrica, serviços de costura. Ou então é faxineira contratada por empresas de serviço para limpar prédios. Pode ainda ser diarista, embora poucas mulheres fossem loucas de colocar alguém assim para conviver com seus maridos e filhos.
O tronco... cirúrgica e rapidamente falando: seios fartos passando por uma barriga que não é exatamente uma tábua (está algo acima do peso) e terminando em coxas e batatas da perna grossas lindamente torneadas. A despeito do que qualquer outra mulher possa dizer ela não é gorda. Nem “cheinha”. Ela é voluptuosa, ou como dizem algumas classes, “parruda”. O tipo de beleza que fazia sucesso na época da Marilyn Monroe.
Gorda, algumas ainda diriam.
Prá fim de conversa, ela diria para qualquer pessoa que lhe olhasse com desdém: “Pois fique sabendo que até hoje ninguém reclamou, viu?”. E nós homens concordamos com ela. Dá-lhe garota! Por fim pés pequenos mais meio grosseiros.
Cobrindo-lhe o corpo (e descontando a roupa de baixo), temos uma blusinha de manga curta branca com uma blusa de malha rosa por cima, tendo estampado o desenho do Leitão. Calça capri preta
“Capri não; corsário! Seja mais moderno, né?”.
Ok. Você que sabe, afinal a roupa é sua.
Como eu ia dizendo , uma calça corsário de tecido preto, uma meia branca baixada junto ao tênis preto simples. A tiracolo carrega uma bolsa média de nílon preto na qual ela carrega o celular, que tem um badulaque qualquer do Puf... Não, da Hello Kitty. Alem disso carrega os documentos (numa carteira), vale transporte, caneta e bloco, um kit “de emergência” para situações delicadas, além de um rádio com fones de ouvido que já está fazendo hora extra, e só não foi substituído por um MP3 player por falta de verba para a aposentadoria. As roupas parecem meio velhas, porque ela vai trabalhar, e não é nenhuma “desfrutável”. As roupas boas ficaram para quando vai às baladas procurando o príncipe encantado ou quando vai à igreja (não importa se é católica, evangélica ou protestante, ela comparece todo o domingo a uma igreja, e quando faz isso vai com as roupas boas, ponto).
Pronto. Agora só falta um nome. Tem que ser algo brasileiro e simples, que reflita a realidade a nossa realidade, algo meio Macabéa. Não pode ser Maria, tem de ser algo mais produzido. Já sei, Anamaria. Por quem sonhas, ó bela? Enfim. Temos finalmente um personagem: Anamaria. Lá vai ela, Anamaria, uma mulher, muitas mulheres, descendo a rua de casa para pegar o ônibus e ir trabalhar numa manhã sonolenta do Brasil.

Caos urbano I

INSANIDADE - Francisco


Arnaldo deu um suspiro. Olhava por cima da jarra de chopp para Francisco. Bem que lhe avisaram que o amigo estava estranho. Mas, por mais que lhe segredassem qualquer coisa, ninguém o haveria preparado para o que via. Francisco parecia um trapo, apenas a sombra do homem que fôra. Embora jovem, podia-se ver pelo modo desarrumado de vestir-se ou pentear-se que algo de errado havia; impressão confirmada pela maneira pela qual o rapaz olhava desvairadamente de um lado para o outro. Arnaldo resolveu falar:
- Bom Chicão, cê que me chamou aqui. O que que tá pegando?
O outro não respondeu. Parecia concentrado em algo que deveria fazer. Pegava sua caneca, da qual bebia sofregamente, para em seguida largá-la, parecendo que iria levantar. Então parava, o olhar perdido, caindo na mesa até a caneca de chopp, e então o processo recomeçava. Arnaldo tentou de novo:
- Que que passa, hombre? Fala criatura!
O outro pareceu finalmente percebê-lo. Olhou-o como um náufrago olharia um bote, abrindo a boca numa sílaba muda. Então pegou a caneca e tomou um longo gole, assentando-a bruscamente. Finalmente falou:
- Naldão, te chamei aqui com uma finalidade. De todos, você é o meu maior amigo desde a segunda série. Cara, eu precisava desabafar e precisava ser com você.
- Ok, desembucha.
- ... eu to ficando maluco! – Pronto. Finalmente havia admitido. E sabe que depois de dito não parecia tão mau?
- Como assim???
- Eu estou ouvindo os artistas dos filmes falarem comigo.
- Bom, se não for algo feito anteriormente a década de 30 não me parece tão mal, concordas? – A tentativa de fazer humor foi mal interpretada. Francisco ficou sombrio:
- Achei que não fosse entender...
- Me explica...
- O que eu quis dizer foi que eu estou vendo e ouvindo as capas dos DVD’s e fitas VHS por aí falando comigo!!! E eu não consigo calá-los. No início eram apenas zumbidos que eu ouvia pelas locadoras, mas eu insisti em tentar descobrir o que era este som, e acabei me ferrando. Agora qualquer capa de filme que eu encontro quer conversar comigo, e eu não consigo fazer eles ficarem quietos!
- Quer dizer... que os atores nas capas tão mexendo a boca e tudo???
- Prestenção, porra!! Isso não é importante... tá, eles mexem a boca. O problema é que eu não quero falar com eles, só que eles não querem ficar quietos e começam a gritar! Mesmo porque só eu ouço... e o problema é que isso também acontece com os pôsters. Eu tô ficando maluco tentando não ouvir.
Arnaldo estava boquiaberto. Se fosse outra pessoa qualquer ele a mandaria à merda e iria embora. Mas ele nunca faria isso com Francisco, mesmo porque via o estado dele, e lhe fora fácil perceber pela forma que o outro se comportava que o assunto era sério. Tentou um gracejo:
- Pombas... deve ser uma merda passar em frente ao setor de terror... mas os eróticos... – vendo o olhar do amigo, mudou de tática. – Você não acha que está mesmo vendo isso, né??
- Claro que não. Acho que é apenas uma forma da minha mente lidar com isso. Pelo que eu entendi do que ouvi dos filmes, toda forma de arte tem por objetivo criar uma certa emoção nas pessoas. No caso dos filmes, que são muito manipulados, as pessoas que mexem com eles também tem pensamentos sobre o que assistiram e ao manipular a capa deixam as suas impressões nela. No caso o que eu ouço a soma das impressões de cada filme, ou sua identidade. E a minha vida tá ficando uma merda por que eu não consigo ignorá-los. Eles gritam, trazem os sons das cenas mais fortes, enfim fazem uma algazarra do cacete. O pior é o que fazem quando eu realmente os ignoro. Mas eu só to contando isso porque, porque... porque está se espalhando! Eu comecei a ouvir os zumbidos perto de livros e discos. Por enquanto eu tô conseguindo ignorá-los, mas eu não sei por quanto tempo eu poderei agüentar isso, e quando eu cair minha mente vai pro saco! O meu medo é que todos os objetos do mundo comecem a falar comigo, porque aí é que eu vou começar a comer merda e rasgar dinheiro.
A idéia lhe parecia engraçada, e por isso Francisco sorriu. A maneira dele sorrir lembrou a Arnaldo a imagem de Nero, e ele engoliu em seco. Por fim falou:
- E comé queu posso te ajudar???
- Não Pode. Não te chamei pra me ajudar. Apenas para desabafar. Esquece.
- Não. Eu acho que posso...
- Esquece!!! – Francisco interrompeu-o bruscamente, e sorriu de novo daquela maneira que faria sê-lo banido do Utah. – Agradeço sua amizade, e isto é o máximo que você pode fazer por mim.
Levantou-se, deixando o dinheiro para pagar o Chopp. Arnaldo segurou-o pelo braço:
- Mas o que que eles fazem de tão ruim quando são ignorados? Francisco sorriu de novo daquela maneira de quebrar espelhos, enquanto Arnaldo o olhava aterrorizado, soltando automaticamente seu braço. Disse, e então seguiu seu caminho:
- Eles me contam o final.

INÍCIO

Este blogue, o LETRAS MOIRAS foi criado com o objetivo de ser um espaço onde eu possa publicar meus textos literários, e onde meus amigos possam opinar sobre eles.
Para meu cinismo tenho de admitir, também, que é uma forma de me forçar a voltar a escrever
a idéia é de que seja um grande fórum, no qual pelo exercício da dialética possamos todos aprender um pouco mais (eu principalmente). Obrigado pela ajuda.

REGRAS:

1) todos os textos serão publicados pelo menos aos domingos. Esta é uma regra para mim TAMBÉM. Logo todos os textos ecritos poderão ser postados à qualquer dia, mas pelo menos na segunda haverá algo novo;
2) Dos textos:
Cada texto terá um pré-título, que servirá para identificar qual o mote do escrito. Serve para evitar que se leia o que não queremos (separemos a chatice, portanto)

Lachesis(nascimento): (raríssimos) textos pessoais, que indicam minha visão de mundo
Clotho (desenvolvimento): crônicas que eu mais comumente escrevo;
Atropos (morte): críticas e análises
Queres (deusas da devastação*): meus raros contos de terror.

* Explicação: Hades convocava as Queres (Hybrids: Desmedida; Limos: A Fome; Poinê: A que castiga) para suas batalhas. Após as batalhas elas devoravam os mortos e escoltavam as almas para o inferno

Que os jogos comecem.

talvez seja o destino....