Caos urbano I

INSANIDADE - Francisco


Arnaldo deu um suspiro. Olhava por cima da jarra de chopp para Francisco. Bem que lhe avisaram que o amigo estava estranho. Mas, por mais que lhe segredassem qualquer coisa, ninguém o haveria preparado para o que via. Francisco parecia um trapo, apenas a sombra do homem que fôra. Embora jovem, podia-se ver pelo modo desarrumado de vestir-se ou pentear-se que algo de errado havia; impressão confirmada pela maneira pela qual o rapaz olhava desvairadamente de um lado para o outro. Arnaldo resolveu falar:
- Bom Chicão, cê que me chamou aqui. O que que tá pegando?
O outro não respondeu. Parecia concentrado em algo que deveria fazer. Pegava sua caneca, da qual bebia sofregamente, para em seguida largá-la, parecendo que iria levantar. Então parava, o olhar perdido, caindo na mesa até a caneca de chopp, e então o processo recomeçava. Arnaldo tentou de novo:
- Que que passa, hombre? Fala criatura!
O outro pareceu finalmente percebê-lo. Olhou-o como um náufrago olharia um bote, abrindo a boca numa sílaba muda. Então pegou a caneca e tomou um longo gole, assentando-a bruscamente. Finalmente falou:
- Naldão, te chamei aqui com uma finalidade. De todos, você é o meu maior amigo desde a segunda série. Cara, eu precisava desabafar e precisava ser com você.
- Ok, desembucha.
- ... eu to ficando maluco! – Pronto. Finalmente havia admitido. E sabe que depois de dito não parecia tão mau?
- Como assim???
- Eu estou ouvindo os artistas dos filmes falarem comigo.
- Bom, se não for algo feito anteriormente a década de 30 não me parece tão mal, concordas? – A tentativa de fazer humor foi mal interpretada. Francisco ficou sombrio:
- Achei que não fosse entender...
- Me explica...
- O que eu quis dizer foi que eu estou vendo e ouvindo as capas dos DVD’s e fitas VHS por aí falando comigo!!! E eu não consigo calá-los. No início eram apenas zumbidos que eu ouvia pelas locadoras, mas eu insisti em tentar descobrir o que era este som, e acabei me ferrando. Agora qualquer capa de filme que eu encontro quer conversar comigo, e eu não consigo fazer eles ficarem quietos!
- Quer dizer... que os atores nas capas tão mexendo a boca e tudo???
- Prestenção, porra!! Isso não é importante... tá, eles mexem a boca. O problema é que eu não quero falar com eles, só que eles não querem ficar quietos e começam a gritar! Mesmo porque só eu ouço... e o problema é que isso também acontece com os pôsters. Eu tô ficando maluco tentando não ouvir.
Arnaldo estava boquiaberto. Se fosse outra pessoa qualquer ele a mandaria à merda e iria embora. Mas ele nunca faria isso com Francisco, mesmo porque via o estado dele, e lhe fora fácil perceber pela forma que o outro se comportava que o assunto era sério. Tentou um gracejo:
- Pombas... deve ser uma merda passar em frente ao setor de terror... mas os eróticos... – vendo o olhar do amigo, mudou de tática. – Você não acha que está mesmo vendo isso, né??
- Claro que não. Acho que é apenas uma forma da minha mente lidar com isso. Pelo que eu entendi do que ouvi dos filmes, toda forma de arte tem por objetivo criar uma certa emoção nas pessoas. No caso dos filmes, que são muito manipulados, as pessoas que mexem com eles também tem pensamentos sobre o que assistiram e ao manipular a capa deixam as suas impressões nela. No caso o que eu ouço a soma das impressões de cada filme, ou sua identidade. E a minha vida tá ficando uma merda por que eu não consigo ignorá-los. Eles gritam, trazem os sons das cenas mais fortes, enfim fazem uma algazarra do cacete. O pior é o que fazem quando eu realmente os ignoro. Mas eu só to contando isso porque, porque... porque está se espalhando! Eu comecei a ouvir os zumbidos perto de livros e discos. Por enquanto eu tô conseguindo ignorá-los, mas eu não sei por quanto tempo eu poderei agüentar isso, e quando eu cair minha mente vai pro saco! O meu medo é que todos os objetos do mundo comecem a falar comigo, porque aí é que eu vou começar a comer merda e rasgar dinheiro.
A idéia lhe parecia engraçada, e por isso Francisco sorriu. A maneira dele sorrir lembrou a Arnaldo a imagem de Nero, e ele engoliu em seco. Por fim falou:
- E comé queu posso te ajudar???
- Não Pode. Não te chamei pra me ajudar. Apenas para desabafar. Esquece.
- Não. Eu acho que posso...
- Esquece!!! – Francisco interrompeu-o bruscamente, e sorriu de novo daquela maneira que faria sê-lo banido do Utah. – Agradeço sua amizade, e isto é o máximo que você pode fazer por mim.
Levantou-se, deixando o dinheiro para pagar o Chopp. Arnaldo segurou-o pelo braço:
- Mas o que que eles fazem de tão ruim quando são ignorados? Francisco sorriu de novo daquela maneira de quebrar espelhos, enquanto Arnaldo o olhava aterrorizado, soltando automaticamente seu braço. Disse, e então seguiu seu caminho:
- Eles me contam o final.

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