Caos Urbano II

Insanidade Américo

São Paulo, meio dia em ponto. Ele pára e olha em seu relógio. Quem o visse parado não repararia; afinal era apenas outro transeunte. E, admitamos, quem o olhasse atentamente não veria nada de mais tampouco: Entre quarenta e cinqüenta, franzino, de óculos. Os cabelos rebeldes no que um leitor mais culto chamaria de “estilo Beethoven”, camisa de lã simples e calça jeans, com um tênis tipo conga, azul. A qualquer um que o enxergasse, partindo do princípio que enxergar e ver são duas coisas distintas, pensaria nele como um professor de ciências, como os que existem às pencas em filmes da sessão da tarde. Mas ninguém pensaria nele por muito tempo mesmo porque ele parara no centro de São Paulo, e fora o único, já que São Paulo não sossega nem em fim de semana especialmente seu centro, grande formigueiro onde cada um tem uma tarefa que não permite atrasos.
Ele então levantou os olhos, e reparou que estava onde devia: no viaduto do Chá. Lugar lindo de se admirar, pelo menos no cartão postal. Apenas quem o viu ao vivo é capaz de apreciá-lo, com seu sol de rachar, sua multidão compacta e ainda assim fluida, as mulheres que lêem a sorte e os vendedores com seus produtos no chão. Posto que era o lugar e a hora ele pensou em começar. Postou-se entre duas baianas jogadoras de búzios e levantou a cabeça. Só assim pôde-se ver seus olhos, e todas as impressões acima caem por terra. Algo neles havia de terrível e inominável, que faria qualquer um evitar o dono daqueles olhos febris. Ele pigarreou e disse na voz mais alta que pôde:
- Amigos, companheiros, concidadãos!
As pessoas que estavam à sua volta afastaram-se instintivamente, alguns olhando assustados e outros ressentidos. Ele continuou, agora gritando:
- ESTAMOS VIVENDO UMA MENTIRA!!!!!!! SOMOS TODOS ESCRAVOS!
Algumas pessoas pararam, algumas mesmo procurando o gesto clássico da mão batendo no livro ou levantando-o, sinal básico indicativo dos pastores que infestam a região, procurando salvar a alma daqueles que querem apenas ser salvos de seus sermões. Não o vendo, continuaram no lugar, esperando o próximo passo. Sorrindo ele continuou.
E ninguém entendeu nada. O camarada começou a falar de maneira enrolada no que alguns, mais pelo sotaque do que por conhecer a língua reconheceram como Francês. A pequena multidão ficou decepcionada, e depois ultrajada já que queria entender o que lhe era dito. Mas a verdade é que o discurso por si só tinha força, o homem tinha o carisma de um desvairado discursando (o que não deixava de ser preocupante, convenhamos). E ele, empolgado, começou a cantar uma música. Apesar disso, uma mensagem tem que ser entendida para prender as pessoas ali, e ele viu espantado sua platéia minguar. Ficou agoniado e falou:
- SERÁ QUE VOCÊS NÃO ENTENDEM??? – começou a arrancar os cabelos e bater na testa de raiva. Aqueles que insistiram em acompanhá-lo agora riam dele e assim que nosso personagem viu, desesperado, crescer o número de pessoas que zombavam dele. Ele continuou em inglês mas ali não havia quem o pudesse compreender. Rasgou a camisa em desespero com um grito, e o povo aplaudiu, imerso que estava no que agora se desenrolava como um drama cotidiano. Continuou com um palavrório esquisito, que provavelmente era grego. Afinal é quando se fala assim você pode perguntar “tá falando grego ou o quê?”. Jogou seus tênis longe, e continuou num som que parecia um canto gregoriano. Continuavam zombando dele, e ele o percebeu com um laivo de desesperança. Ameaçou retirar calça e cuecas. Foi quando alguém percebeu (uma beata, provavelmente) o quão perigoso ele podia ser e foi buscar a polícia, cujo posto móvel parara um pouco mais à frente, junto a rua direita. Ele finalmente se desnudara, para vergonha de alguns quando os agentes da lei chegaram. Tendo-os percebido, ele fez o impensável: passou por cima do muro de contenção, ficando a um passo de cair. Uma mão segurando a beirada, um pé na reentrância que ali existia e o resto solto, abaixo apenas o vale do Anhangabaú. Alguém na multidão gritou.
Olhando para baixo, ele começou a bradar ferozmente numa língua mais enrolada que o grego, e que pela vocalização parecia algo saído de um gulag embora ninguém ali, nem os guardas soubessem o que um gulag era. E não, não é um cozido, isso é gulash. Ouviu uma voz contrapondo-se a sua. Percebeu que era um dos oficiais que pedia para ele não pular. Ele não entendia, como o policial poderia pensar isso e percebeu, pelo olhar interrogativo de todos que não poderia resistir a sair dali, ninguém o ajudaria, mesmo porque ninguém o entendera. Destroçado, entregou-se às autoridades. Eles o vestiram e trataram de levá-lo a algum lugar que oferecesse tratamento ao pobre homem.
Ele olhava da janela entristecido para a multidão que agora fazia-lhe cara de pena. Só lhe restava morrer. Ninguém havia entendido, não pudera salvar ninguém. Recitara-lhes La Boetie, Lafargue, Cicero e Virgílio, Platão e Bakunin. Chegara mesmo a cantar a Marselhesa. Enfim, tentara a todo custo libertá-los, mostrar que o sistema em que viviam era aviltante e sustentado apenas por eles mesmos; assim se libertar seria extremamente fácil.
Mas falhara miseravelmente.

Um comentário:

Anônimo disse...

Genial. Acho que precisamos de coisas que retratem a cidade, a nossa cidade, seus pontos famosos porque é neles que circulam silenciosos desesperos e angústias, em cenhos franzidos. Embora circule também as maiores abjeções da alienação. Palmas, palmas!